Dúvida, a sombra da fé
Rui Luis Rodrigues
Comunidade Carisma, 11 de julho de 2010
João 20:19-29
Quero hoje refletir com vocês sobre as relações que existem entre fé e dúvida. E desejo fazer isso movido por uma profunda preocupação. Estou mais do que consciente das imensas riquezas que existem na esperança cristã. O texto que lemos nos mostra, de forma muito bela, o que é a igreja: os discípulos reunidos no cenáculo no primeiro dia da semana e o Senhor que surge no meio deles; isto somos nós, é uma descrição simbólica da igreja. Uma comunhão de homens e mulheres com o Senhor ressuscitado, que está presente no meio dessa reunião (dessa “assembleia”, dessa ekklesia) e que sopra sobre essa comunidade seu Espírito Santo. Uma sociedade que tem como finalidade anunciar ao mundo a melhor de todas as notícias: não precisamos mais viver consumidos pelo sentimento de culpa, porque Deus em Cristo nos perdoou a todos!
Mas essa riqueza não é conhecida e experimentada por todos. Existem pessoas que têm dúvidas e que imaginam que suas dúvidas representam falta de fé; por causa dessas dúvidas elas se excluem da riqueza que existe no evangelho. Outros acabam se afastando da igreja quando percebem que duvidam de algo relacionado à fé e imaginam que, por duvidarem, já não têm razão para prosseguir.
A dúvida é uma reação humana. Se lermos as biografias de homens e mulheres de fé, em todos eles encontraremos registrada a experiência da dúvida. São João da Cruz, um dos maiores místicos cristãos do século XVII, falava com frequência na “noite escura da alma”, quando Deus parecia estar tão distante que era fácil pensar que Ele não existia. Recentemente foram publicadas cartas de madre Teresa de Calcutá e muitos se surpreenderam por ela falar também, várias vezes, de suas dúvidas. E no entanto, foram pessoas de fé! O irmão Roger, evangélico francês que fundou, na década de 1940, uma comunidade ecumênica de monges chamada Comunidade de Taizé, costumava dizer: “A dúvida nos segue como nossa sombra”. Creio que temos razões suficientes para entender que fé e dúvida não são opostos. A existência da dúvida não significa a inexistência da fé. Ao contrário: podemos afirmar que, se há dúvida, é porque há fé. A dúvida é a sombra da fé. Assim como somente um corpo concreto pode projetar sombra de si mesmo, da mesma forma somente existe dúvida (a sombra) onde há uma fé concreta.
Sei que essas noções são inusitadas para a maioria. Mas vamos refletir juntos e compreender as bases que me levam a estas afirmações.
I – Entendendo o que é “fé”
Em geral quem considera a dúvida como sendo o oposto da fé revela uma concepção de fé que não é aquela que encontramos nas Escrituras.
Para essas pessoas, a fé é, antes de mais nada, uma espécie de concordância intelectual em relação a determinadas afirmações. Alguém pergunta: “Você crê em tal coisa?” e nós achamos que temos fé quando conseguimos responder “Sim!”. No entanto, as Escrituras nunca entendem “fé” desse jeito.
Quem nos mostra a insuficiência desse conceito de “fé” é Tiago. Ele nos diz em sua carta:
Você crê que existe um só Deus? Muito bem! Até mesmo os demônios crêem – e tremem! (Tiago 2:17)
Em outras palavras, se entendemos “fé” como concordar mentalmente com algo, então até mesmo os demônios têm fé. Mas a fé não é isso. Fé é um ato que envolve a pessoa como um todo. Fé é a dedicação da pessoa a algo (ou a alguém) que a toca incondicionalmente. Fé é comprometer-se incondicionalmente com algo (ou com alguém).
Se entendermos “fé” como mera concordância mental, então a “dúvida” será o seu oposto. Mas, se entendermos “fé” como “dedicar-se incondicionalmente a algo”, então a dúvida deixa de ser o antônimo da fé.
“Dedicação incondicional” é o que encontramos na relação dos discípulos com o Senhor, no Novo Testamento.
Andando à beira do mar da Galiléia, Jesus viu Simão e seu irmão André lançando redes ao mar, pois eram pescadores. E disse Jesus: “Sigam-me, e eu os farei pescadores de homens”. No mesmo instante eles deixaram as suas redes e o seguiram. (Marcos 1:16-18)
Esse ato não foi isento de dúvidas. O próprio Pedro chegou a dizer a Jesus: “Nós deixamos tudo para seguir-te! Que será de nós?” (Mateus 19:27). Em outras ocasiões, ele e os demais discípulos se escandalizavam com o que Jesus ensinava, não conseguiam alcançar o significado dos seus ensinos.
Ao ouvirem isso, muitos dos seus discípulos disseram: “Dura é essa palavra. Quem pode suportá-la?” (João 6:60)
No entanto, mesmo escandalizado, mesmo sem entender, Pedro responde a Jesus:
Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras de vida eterna. (João 6:68)
Esses discípulos não tinham todas as respostas para suas perguntas. O que eles tinham era uma adesão a Jesus, baseada na percepção de que “Jesus era o cara!” Não podiam se imaginar longe dele. Isso é fé!
É isso que encontramos na atitude de outras pessoas que se aproximavam de Jesus com fé. Vou citar o caso mais extremo, num certo sentido, porque é justamente aquele no qual, segundo dizem alguns erroneamente, não havia fé. O relato pode ser encontrado em Marcos 9:14-27. Um pai vem até Jesus procurando a cura para seu filho. Num dado momento ele diz a Jesus: “Se podes fazer alguma coisa, tem compaixão de nós e ajuda-nos” (Marcos 9:22). Jesus estranhou sua afirmação e respondeu a ele: “Se podes? Tudo é possível àquele que crê” (Marcos 9:23). Chamo a atenção de vocês para a resposta surpreendente do pai do menino:
Imediatamente o pai do menino exclamou: “Creio, ajuda-me a vencer a minha incredulidade!” (Marcos 9:24)
Já ouvi muita gente falando sobre a aparente confusão do homem, que diz crer para, em seguida, confessar sua incredulidade. Para quem tem um conceito superficial de “fé” como sendo mera concordância mental, o homem está irremediavelmente confuso. Mas essa não é a verdade. Não havia incredulidade nesse homem! Havia dúvida, mas não incredulidade!
O fato é que ele foi buscar socorro em Jesus. É assim que se manifesta a fé. No meio do seu sofrimento, esse homem viu em Jesus a possibilidade de salvação. Logo no começo do texto ele expressa sua fé, ao dizer a Jesus (v. 17): “Mestre, eu te trouxe o meu filho”. Ora, a incredulidade não o faria vir até Jesus; a incredulidade não o faria esperar por Jesus. Pessoas que não criam em Jesus não vinham procurá-lo; no máximo, como faziam tantas vezes os fariseus, ficavam de longe, tentando-o, pedindo a ele que fizesse algum “sinal” para que pudessem crer. Não é o que faz este homem: ele vai até Jesus porque sabe que Jesus pode ajudá-lo!
A atitude desse homem demonstra sua adesão a Jesus. Mas ele tem dúvidas. A dúvida desse homem cancela a sua fé? A fé dele deixa de existir porque ele diz a Jesus: “se podes fazer alguma coisa”? Claro que não!
Este é um exemplo claro de que a dúvida pode existir, e existe frequentemente, onde há fé. O incrédulo não tem dúvidas; ele simplesmente não crê e pronto! A dúvida só é possível naquele que tem fé.
Mas alguém pode argumentar que este meu ensino contradiz a Escritura. “Veja”, alguém pode dizer, “na carta de Tiago lemos que aquele que pede algo a Deus deve fazê-lo com fé, sem duvidar”. Vamos tentar entender o que está dito em Tiago 1.
Peça-a [a sabedoria], porém, com fé, sem duvidar, pois aquele que duvida é semelhante à onda do mar, levada e agitada pelo vento. Não pense tal pessoa que receberá coisa alguma do Senhor, pois tem mente dividida e é instável em tudo o que faz. (Tiago 1:6-8)
Neste texto, Tiago assemelha a dúvida à inconstância; por isso compara o que duvida à onda do mar, inconstante, levada para diferentes lados pelo vento. A seguir, ele explica quem é esse que duvida: trata-se de alguém que tem “mente dividida” (NVI) – a versão Revista e Atualizada traduz como “homem de ânimo dobre” (v. 8) a expressão grega anèr dípsykos, “homem de alma dupla”.
O que significa ter “mente dividida” ou ser homem de “alma dupla”? Ora, trata-se justamente da falta de dedicação incondicional! O inconstante não está comprometido incondicionalmente; ele não aderiu a Jesus, como aderiram os discípulos e aquelas pessoas que procuravam ajuda em Jesus. É em função dessa falta de compromisso que ele oscila em diferentes direções.
Portanto, Tiago não está descrevendo simplesmente alguém que tem dúvidas. Ele está descrevendo alguém que ainda nem chegou a crer, porque nunca se dedicou incondicionalmente, nunca reconheceu que sua esperança está em Cristo, por mais que, eventualmente, possa ter dúvidas.
“Dedicação incondicional”, “adesão a Jesus”, são expressões contemporâneas que procuram traduzir o significado do termo bíblico “fé”. Ter fé é seguir a Jesus. É possível ter dúvidas nessa caminhada? Sim! O que é importante é que a caminhada continue. A vida cristã é uma vida que está orientada na direção de Deus; estamos “na estrada”, “no caminho” em direção a ele. O que importa não é se temos dúvidas ou não, mas se prosseguimos no caminho!
II – Aprendendo a lidar com a dúvida
Duvidar é humano. Mas é possível aprender a lidar com a dúvida. O relato de João 20, que lemos no início, pode nos ajudar com algumas indicações importantes.
Primeiro, vamos notar que a experiência dos discípulos reunidos – ver Jesus ressuscitado – foi uma experiência de fé. Já me inquietou muito o fato de Jesus, após a ressurreição, só aparecer para os discípulos. Eu me perguntava se não teria sido interessante, “estratégico”, que ele aparecesse para todos: uma aparição pública, no mercado de Jerusalém ou no pátio do Templo na hora de maior aglomeração de pessoas. Que impacto não representaria, para aquele povo todo, ver novamente vivo o homem cuja morte a maioria deles assistiu!
Finalmente compreendi que isso nunca aconteceu porque seria impossível. Jesus apareceu apenas aos discípulos porque existe uma condição fundamental para ver Jesus ressuscitado: essa condição se chama fé. Na ressurreição o ser de Jesus retornou inteira e integralmente à vida, mas ele já não pertence mais às dimensões deste mundo; ele já não pode mais ser percebido pelos mesmos recursos que usamos para perceber a realidade ao nosso redor. É isso, no meu entender, que o texto deseja frisar ao repetir a informação de que Jesus “veio”, apesar das portas estarem trancadas:
Ao cair da tarde daquele dia, o primeiro da semana, trancadas as portas da casa onde estavam os discípulos com medo dos judeus, veio Jesus, pôs-se no meio e disse-lhes: Paz seja convosco! (João 20:19, revista e atualizada)
Estando as portas trancadas, veio Jesus, pôs-se no meio e disse-lhes: Paz seja convosco! (João 20:26, revista e atualizada)
O Senhor ressuscitado não precisa “entrar”. Ele apenas “vem”, ele apenas se faz presente. Ele não está mais sujeito às regras que coordenam a vida neste universo. Com ele não nos relacionamos mais do mesmo jeito que os discípulos se relacionavam antes. Essa lição foi bem aprendida por Paulo:
De modo que, de agora em diante, a ninguém mais consideramos do ponto de vista humano. Ainda que antes tenhamos considerado Cristo dessa forma, agora já não o consideramos assim. (2 Coríntios 5:16)
Antes Cristo podia ser percebido por qualquer pessoa; até os fariseus sem fé podiam vê-lo. Agora ele só pode ser percebido pela fé. Costumo dizer que se houvesse uma câmera no cenáculo, filmando tudo, ela não conseguiria registrar a presença de Jesus; os discípulos o viram, os discípulos tocaram nele, mas a câmera não registraria nada disso, porque uma câmera não tem fé. Interessante notar: não foi a ressurreição que gerou fé nos discípulos; foi a fé que já existia neles, foi essa adesão incondicional a Jesus, que lhes permitiu ver o Ressuscitado!
Na sequência, vemos que Tomé, que não estava presente nessa ocasião, duvidou veementemente do relato que ouviu. No entanto, uma semana depois, quando Jesus apareceu novamente, lá estava Tomé – e, nessa ocasião, junto com os outros, Tomé viu o Senhor. Que lições podemos tirar de sua experiência?
1) Não deixe que suas dúvidas cancelem seu compromisso
Não há dúvida de que Tomé duvidou. Mas suas dúvidas não o afastaram do convívio dos discípulos. Na semana seguinte, como deixa claro João 20:26, lá estava Tomé com eles. O que mantinha Tomé ligado àquele grupo? Certamente a mesma adesão a Jesus, a mesma “dedicação incondicional”. Em outras palavras, a fé! Se fosse realmente incrédulo, Tomé teria ido embora, teria se afastado (tanto mais que, como indica o texto, a turma estava com medo dos judeus!).
No decorrer da minha vida já duvidei muito. Tenho certeza de que ainda duvidarei bastante. Mas minhas dúvidas, por mais complexas que possam me parecer, não cancelam minha dedicação incondicional a Jesus, porque essa dedicação está além de qualquer convencimento racional. Eu simplesmente fui atraído pelo Senhor. Estou constitutivamente impossibilitado de não crer em Deus!
Na minha adolescência, por volta dos 14 anos, eu era comunista. Eu sabia que os comunistas eram, em sua maioria, ateus; mas eu não conseguia ser ateu. Resolvi isso dentro de mim, dizendo a mim mesmo: “Nunca vou conseguir ser ateu. Serei um comunista que crê em Deus”. O tempo passou, eu deixei de ser comunista, o comunismo deixou de ser comunista, mas eu continuei crendo em Deus. Na minha vida, as dúvidas que eventualmente surgem são apenas a sombra da minha fé. Servem para me lembrar que minha fé é real e é bem maior do que minhas dúvidas!
2) Nunca deixe de ser sincero
Admira-me muito a sinceridade de Tomé. Crer no relato dos discípulos representou para ele um limite que, no momento, ele não conseguia transpor. Como o pai do menino, no relato de Marcos 9, também Tomé tinha dúvidas.
Mas sua postura foi assumir sinceramente suas dúvidas. Ele não as ocultou para dar a impressão de que “cria”; ele não dissimulou suas perguntas para “fazer média” com o grupo de discípulos.
Teríamos mais pessoas na igreja se aprendêssemos a respeitar as dúvidas dos outros. Teríamos mais pessoas na igreja se, ao invés de exigirmos de todos discursos uniformes, aprendêssemos que cada um de nós se encontra num determinado ponto da caminhada. A igreja não é o lugar onde todos pensam a mesma coisa, onde todos concordam sobre as mesmas doutrinas, mas o local onde se reúnem as pessoas que, de uma forma ou de outra, foram atraídas para Jesus Cristo, foram impressionadas por seu caráter singular. Prefiro que alguém com dúvidas esteja ao meu lado, na igreja, do que fora dela!
3) Superamos nossas dúvidas apenas diante do Senhor
A experiência de Tomé nos ensina que o único lugar onde conseguimos superar nossas dúvidas é diante do Senhor. Um cristão dos nossos dias escreveu o seguinte: “Sei por experiência que minha fé é uma dúvida continuamente sobrepujada pela adesão a um mistério (...). Tropeçando às vezes, mas voltando a erguer-me, sigo uma luz que me orienta na noite. Que luz? A que emana da ressurreição de Jesus” (Jean Delumeau, As razões da minha fé, p. 77).
E Jesus disse a Tomé: “Coloque o seu dedo aqui; veja as minhas mãos. Estenda a mão e coloque-a no meu lado. Pare de duvidar e creia”. (João 20:27)
Na segunda aparição, Jesus responde a Tomé nos mesmos pontos que este questionava. É um sinal tocante de que o Senhor não pede de nós uma “fé heróica”, inabalável; ao contrário, ele desce até o nível em que nos encontramos. É como se o Senhor dissesse a Tomé: “Você precisa me tocar, Tomé? Não é esse o ideal; felizes os que não me viram com os olhos físicos e mesmo assim creram. Mas, venha cá: põe teu dedo aqui, pode tocar!”
O que é, para nós, esse “tocar” no Senhor? Tomé toca as feridas do Ressuscitado: os sinais dos cravos nas mãos e o sinal da lança que feriu o lado do Senhor. Podemos dizer que as nossas dúvidas são resolvidas, hoje, não por um mero toque físico no Senhor, mas pela percepção do seu amor. Porque falar dos sinais dos cravos é falar do amor que deu a própria vida por seus amados; é falar do Deus que decidiu compartilhar até à morte a sorte dos seres humanos, para poder torná-los participantes da sua vida.
Em meio às minhas dúvidas, toco nas mãos do Senhor cada vez que percebo a intensidade e a grandeza do seu amor. Isso não é algo que possa ser traduzido em palavras. É experiência. Quando, no íntimo de mim mesmo, percebo a realidade desse amor, vejo que as dúvidas se dissolvem dentro de mim. Assim como o sol do meio-dia não gera sombras, esses momentos em que percebemos o amor do Senhor por nós fazem desaparecer as nossas dúvidas.
Elas podem voltar; mas não me atemorizam mais. Tenho memória do amor de Jesus que eu já enxerguei e sei que esse amor é mais forte do que qualquer coisa do universo. Nenhuma dúvida pode me separar do amor de Deus, que está revelado em Jesus Cristo nosso Senhor!
O desafio para nós, hoje, é entendermos que nossas dúvidas, sejam quais forem, não nos separam de Deus. Não são sinal de incredulidade. Devemos prosseguir no caminho, seguindo a Jesus e confiando que o amor dele, cada vez mais, nos iluminará. Nunca deixaremos de ser humanos, o que significa que sempre poderemos duvidar; mas, se estamos comprometidos com o Senhor de forma incondicional, nossas dúvidas não nos afastarão dele!
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